quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Hoje devo ter batido já um deserto inteiro, à máquina, cada grão uma sílaba, e não vejo o fim disto, nenhum eco me trouxe o que buscava, e, hoje seria uma ofensa se alguém o tentasse trazer! Tenho cinquenta, os pulmões cheios de musgo. Quem nos lê, vê-nos por aí entregues, aos restos mortais do impossível, a minoria de que fazemos parte, tu e eu e uns poucos mais, esforçando o ritmo, para atingir o âmago, tentando fazer saltar, o reverso da vida. Mas!! Para quê? Seguimos para o funeral de outro de nós, alguém que puxou a sua rede um pouco mais cedo...Hoje sinjo-me a lavar a loiça, os pratos estão alinhados, é apenas um! Sentido de ordem que antes levava alguns a viver de roda de um soneto, fico aqui no alpendre, enquanto acendo um cigarro e o deixo nos lábios do tempo, ardendo a sós, apreciando a colecção de garrafas, com as suas diferentes medidas como se fossem vasos com um pouco de terra e mais nada... Recordo, gestos vivos, perfis genuinos intactos, após três dias de terror, diante dessa esquiva graça, e se uns se desgraçam perseguindo formas, outros perderam o juízo entre murmúrios, parecem alimentar-se de sons, devorando as intimidades do idioma. Talvez isto possa ser o suficiente, mas!! Pelo pátio espalha-se a poeira, mal se escutam as passadas ofegantes, pouca coisa tem a dizer-nos este tempo, as grandes lições os triunfos a sabedoria que mais nos comove os sussurros da seda, as melhores vozes tudo o que vibrou e deu gosto aos dias está por aí enterrado, nos textos, e os amantes colhem toda a exuberância... No passado, os mais tumultuosos reflexos, ecos de flores, dos corpos, dão-se sacudindo o ouro, para que se possa de novo, respirar, para que os milénios passem por nós e nos ofereçam o seu abalo... Se somos velhos, essa paixão do que se respirou sobre a terra é o que fala ainda por nós! Hoje digo, se não fosse a compaixão que nos arrasta para dentro da terra e os devolve ao pó, se ela não se ocupasse nós, o que seria dos incapazes de obras ou de um sincero sorriso? Apenas restariam por aí, esquecidos de si próprios, sem esse gesto que afinal é doce e compreensivo! É essa a última dignidade, que alimenta a necessidade da recordação, libertando música que leva os fantasmas que ainda nos falam, perguntando pelos gestos de que vivemos suspensos, essa trama íntima sacudida assim é tudo o quanto ela nos tira, é disso precisamente que o ser humano num tempo tão desolado como este, deseja para erguer a sua árvore! A luz não nos obedece! É difícil segurar-nos e persistir, tão à flor de nervos desarmados, saber de nós nesta língua de farrapos, a rebentar de ecos, roncos, entre tantos remoinhos, regressos a outras idades, as misturas, e os estragos que isso faz num homem, a consciência zunindo com um gosto a tempestade, e mesmo desconfiando da própria respiração, vemos o que nos resta com toda a força, as evidências extraordinárias do que se abate contra nós, e se escrevemos é na ânsia de dar ordens ao tempo, humedecer-lhe os lábios, para deslizar entre essas formas leves esse modo de evadir-se, que deixa aos versos aquele tremor das grandes verdades...

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